O telefone no quartel toca. Do outro lado da linha, a ordem para que o tenente comparecesse ao Quartel do Comando Geral da PMDF – QCG. Reunião de comandantes. Diante da pergunta sobre qual o assunto da reunião, a secretária diz que não sabia e que apenas recebera ordem para chamar todos os comandantes de unidade perante o comandante-geral. Ali, urgente, naquele momento.
Já no QCG, entre quase trinta majores e tenentes-coronéis, todos os comandantes das unidades operacionais da PMDF, um único tenente, comandante da Polícia Turística, com apenas 80 policiais sob seu comando, mas frequentando reunião de comandantes, dada a quase independência de sua unidade.
Enfim, depois de quase uma hora de espera, chega o comandante geral. Todos se levantam das cadeiras no acanhado e bolorento auditório do QCG. O tenente, no fundão. Militares se sentam por ordem de antiguidade em auditórios: mais antigos na frente e mais modernos ao fundo. Sem muitas delongas e formalidades o coronel determina que todos descam para o pátio do Quartel do Comando Geral, onde assistiriam a uma demonstração de motociclistas.
No pátio, diante do busto de Tiradentes, patrono da Polícia Militar, local de muitas formaturas solenes, dois policiais do BOPE aguardavam, cada um em uma moto novinha, ainda sem as cores da PM, indicando serem motos emprestadas pela fábrica ou revendedora para a realização de testes. Logo o tenente percebeu se tratar de uma Honda NX-400, e uma Yamaha XT-600, o que foi confirmado posteriormente pelo comandante.
A ideia era justamente essa, disse o coronel. Fazer um teste. Em suas palavras, disse que seria democrático naquele momento. Dizia que, mesmo no militarismo, a democracia era possível. Segundo ele os oficiais estavam todos ali para escolher qual modelo de moto a PMDF utilizaria dali em diante. Seria uma votação. O modelo que fosse escolhido pelos comandantes ele compraria. 220 motos em um primeiro momento, com opção de comprar mais 200 no futuro. O dinheiro já estaria disponível.
O tenente então pensa nos trâmites legais de uma licitação: “como assim vamos escolher?”. Mas fica ali, na dele, quieto, pois era pato novo diante de tantos majores e tenentes-coronéis.
Ao sinal de cabeça do coronel inicia-se a rápida demonstração. Os policiais do BOPE, treinados no GIRO, de Goiânia (o tenente identificou logo o brevê), eram habilidosos, mas o local não propiciava muitas acrobacias ou desafios ao equipamento. Apenas um estacionamento enorme, com um meio fio à frente, o qual eles subiam e desciam incessantemente, tentando demonstrar a flexibilidade e robustez das motos.
A apresentação durou pouco mais que dois minutos. Os oficiais estavam ansiosos, pois estavam de pé, sob o sol, após esperarem por quase uma hora, e já não mais prestavam atenção à demonstração. Puxavam conversa uns com os outros. Gargalhavam com histórias que o tenente fingia para si mesmo não ouvir, de forma que não risse de superiores hierárquicos, ridicularizados nas histórias contadas pelos oficiais.
Um deles perguntou ao tenente o que era a polícia turística, pois nunca tinha ouvido falar. -Caramba, que anta! pensou o tenente. Mesmo assim explicou detidamente do que se tratava, deixando impressionado o tenente-coronel, que cutucou outro, dizendo: “-Porra, a PM tem soldado que fala francês e japonês. Tu sabia disso?” Ao que o outro tenente-coronel responde: “Ué, você não sabia não? Um bando de viadinhos que fica babando o ovo dos turistas”, o que fez o tenente iniciar um esboço de defesa de sua unidade, quando, o comandante geral, retomando o centro das atenções, interrompeu dizendo que votariam ali mesmo qual moto a PM deveria comprar. Ressaltou, mais uma vez, a importância da democracia. Ele então diz, enfático, inciando a votação: “- Eu prefiro a Honda. Alguém aqui vai votar na Yamaha?“
Os oficiais entreolharam-se, meio sem saber a diferença entre uma e outra e, claro, ninguém disse nada, uma vez que o o comandante já havia externado sua preferência e ninguém seria doido de contrariá-lo. Aliás, seria sim: dois oficiais levantaram as mãos indicando preferirem a Yamaha. Coincidência ou não, eram os dois únicos que ostentavam no peito o brevê de motociclista policial. Ficaram esperando que outros levantassem a mão mas, rapidamente, abaixaram os braços, e também as cabeças, quando o comandante geral deu o veredicto: “-Pronto. Então compraremos Honda, pois só dois votos foram favoráveis à Yamaha. Os senhores esperem que em breve estarei distribuindo as motos nas unidades.”
Enquanto os outros comandantes voltaram a conversar amenidades e a se dirigirem a suas viaturas ou ao gabinete do comandante para aproveitar e tratar de algum outro assunto, os dois que votaram na Yamaha discutiam: “- Porra, como é que o cara quer escolher a moto da PM com base em um teste ridículo desses? Não deu nem pra esquentar o motor”, desabafou o mais antigo, com duas gemadas nos ombros. Ao que o outro retruca: “sinceramente, coronel, isso tá com cara de mutreta na licitação”, quando recebe de volta a pergunta meramente retórica ”E você tem alguma dúvida, pica-fumo?Você tem alguma dúvida?“
Ambos se despediram com cara de decepção e retornaram para suas unidades, pensando nos rumos que a corporação vinha tomando.
Meses depois a PMDF recebeu as 220 motos. As Hondas, claro. Nos quartéis, muitas ficaram mais de um ano paradas, às dezenas, pois a PMDF não tinha motociclistas habilitados para trabalhar em todas as motos, o que rendeu até denúncias na imprensa.
Se houve corrução na licitação? Não se sabe. Mas que teve muita incompetência, ah, isso teve.
E sim, o tenente no meio daquela muvuca era eu. E votei pela Yamaha, na época, acreditando que aquela pantomima fosse verdade.